Nada
é mais incômodo para a arrogância humana que o silencioso bastar-se
dos gatos. O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece. O homem
quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência,
obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias de amor. Só as
saudáveis.
Já
viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um
pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste
saiote e dança valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as
agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o
tigre se amesquinham na jaula. Gato não. Só aceita relação de
independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele
dependente, é chamado de traiçoeiro, egoísta, safado, espertalhão ou
falso.
“Falso”,
porque não aceita a nossa falsidade e só admite afeto com troca e
respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque
precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é
próprio, que é dele e o dá se quiser.
O
gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio, é
esperto. O gato é zen. O gato é Tao. Conhece o segredo da não-ação que
não é inação. Nada pede a quem não o quer. Exigente com quem o ama,
mas só depois de muito se certificar. Não pede amor, mas se lhe dá,
então o exige.
O
gato não pede amor. Nem dele depende. Mas, quando o sente, é capaz de
amar muito. Discretamente, porém, sem derramar-se. O gato é um italiano
educado na Inglaterra. Sente como um italiano, mas se comporta como um
lorde inglês.
Quem
não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato. Ele
aparece, então, como ameaça, porque representa a relação sempre
precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com
a aparência do homem. Vê além, por dentro e avesso. Relaciona-se com a
essência.
Se
o gesto de carinho é medroso ou substitui inaceitáveis (mas existentes)
impulsos secretos de agressão, o gato sabe. E se defende ao afago. A
relação dele é com o que está oculto, guardado e nem nós queremos,
sabemos ou podemos ver. Por isso, quando esboça um gesto de entrega, de
subida no colo ou manifestação de afeto, é muito verdadeiro, impulso
que não pode ser desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o
recebe; significa um julgamento.
O
homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há
desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e
atenua como pode (enfrenta a própria solidão de maneira muito mais
valente que nós).
Se
há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, eles se
afastam. Nada dizem, não reclamam. Afastam-se. Quem não os sabe “ler”
pensa que “eles não estão ali”, “saíram” ou “sei lá onde o gato se
meteu”. Não é isso! É preciso compreender porque o gato não está ali.
Presente ou ausente, ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando
ou fingindo não ver, está comunicando códigos que nem sempre (ou quase
nunca) sabemos traduzir.
O
gato vê mais, vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos, auras,
fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e
parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente ao nosso lado, a
ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério.
Monge,
sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio, a nos devolver as
perguntas medrosas esperando que encontremos o caminho na sua busca, em
vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O gato sempre
responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do
real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a
possibilidade de criatividade e novas inter-relações, infinitas, entre
as coisas.
O
gato é uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações
são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção.
Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que
precisa de promoção ou explicação os assusta. Ingratos os desgostam.
Falastrões os entediam. O gato não quer explicação, quer afirmação.
Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda a
natureza, aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato.
Lição
de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de
respiração e yoga. Ensina a dormir com entrega total e diluição no
Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais completa em todos
os músculos, preparando-os para a ação imediata. Se os preparadores
físicos aprendessem o aquecimento do gato, os jogadores reservas não
levariam tanto tempo (quase quinze minutos) se aquecendo para entrar em
campo. O gato sai do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade
num segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte
do seu corpo, ao qual ama e preserva como a um templo.
Lições
de saúde sexual e sensualidade. Lição de envolvimento amoroso com
dedicação integral de vários dias. Lição de organização familiar e de
definição de espaço próprio e território pessoal. Lição de anatomia,
equilíbrio, desempenho muscular. Lição de salto. Lição de silêncio.
Lição de descanso. Lição de introversão. Lição de contato com o
mistério, o escuro e a sombra. Lição de religiosidade sem ícones.
Lição
de alimentação e requinte. Lição de bom gesto e senso de oportunidade.
Lição de vida e elegância, a mais completa, diária, silenciosa,
educada, sem cobranças, sem veemências ou exageros e incontinências.
O gato é um monge portátil sempre à disposição de quem o saiba perceber.
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